Mais um

Artur Mafud
4 min readAug 5, 2018

A pessoa da frente falou alguma coisa, mas não deu pra escutar. A marcação do tempo está muito clara, afinal não há como ignorar o grave incessante que atinge os ouvidos. Você só se mexe conforme o estrondo treme o teto frágil do salão velho. Aquela agora era a única forma de sobrevivência para o velho salão. Sem problemas, decadência combina muito bem com destruição.

Na sua mão há uma caneca metálica. Dentro dela, há um líquido com uma cor chamativa. Quando a luz colorida incide sobre ele, o efeito espelhado que se forma parece um caleidoscópio. Parece a forma que a sua visão vai ficar logo mais. Calma, eu tô acelerando as coisas.

Dois conhecidos chegam. Vocês gritam, levantam as canecas e acabam com o que há dentro delas. Sem problemas, afinal, eles acabaram de chegar. Mais um.

Na fila você encontra uns outros conhecidos menos conhecidos que os anteriores. Dá pra bater um papo enquanto a interminável fila vai lentamente avançando. Claro que você empurra outras pessoas que estão por perto, não dá pra demorar pra pegar mais um. Chegando no balcão: “Espera só um pouco, vou pegar um pouco disso que tá no galão. Beleza, mais um!”.

A música tá melhor. A dança tá melhor. A galera tá melhor. A caneca não, mas foda-se, você acabou com o que tava nela, a rodinha tinha acabado antes, então é só se olhar que já dá pra saber: hora de mais um.

Agora já dá pra ver melhor a garota que dança na extremidade do salão. Não dá pra saber como, mas ela está mais linda do que o normal. O cabelo mexe enquanto ela dança, seus maravilhosos fios morenos. Ela está alegre e se mexe conforme a batida. Só você sabe o quanto já sonhou com um beijo dela, o quanto já parou de prestar atenção na aula só pra olhar de relance ela passar de camiseta preta, short jeans e chinelo, o cabelo agora com um rabo e aquele sorriso no rosto. Quantas horas de aula já foram perdidas ficando do lado de fora fingindo mexer no celular só pra conseguir observá-la um pouco mais durante o intervalo? Mais um sorriso, mais um riso. Tá calor fora do ar condicionado da sala né? Não tem problema.

Antes não dava, mas agora dá. Caramba, a caminhada não parecia tão longa. Pelo menos agora o coração não bate tão rápido. Dá pra seguir em frente. (Um fast-forward pra poupar você) “Oi! […………………………………………………………..]”

Um riso sem graça. Não é efeito do álcool, é sem graça mesmo. O olhar tem certo um certo quê de desprezo. “Aaaaaa, não. Você é feio. Desculpa”. Nem sei se, na verdade, é o desculpa do final que dói mais. Agora tá foda de verdade. Não é que mais um ajuda a curar, eu preciso de mais um pra aguentar. Os anteriores já tinham ajudado muito, mas, do jeito que tá, ainda não possuem o poder de anestesiar outros tipos de dores. Mais um.

Seus amigos te encontram com cara de funeral. Como é possível, se agora tudo é feliz? Agora não é hora de sofrer por mulher. Se não é hora pra isso, é hora pra mais um. Realmente seria sofrer por mulher isso? Sei lá, mas realmente é hora pra mais um. Tava na metade? Foda-se, vamos acompanhar eles. Acho que tava acabando o gelo né?

Ok, agora eu tô tonto. Tô animado também. É assim que se faz, não ficar em pé andando eternamente enquanto você não sabe de nada que está acontecendo e só conta os minutos pra voltar pra casa. Gritos, pulos, abraços, misto de abraço e apoio, bebida pro alto, risadas, cantos, mais um.

Vamos lá fora tomar um ar. Caramba, que horrível, mal dá pra respirar. “Não, eu não quero isso que você tá fumando”. Opa, dá pra sentar. Já fui. Será que eu tô realmente sentado? Minha cabeça tá rodando tanto. Já preciso ir no banheiro de novo, que saco. Queria ir por aqui mesmo. Vamos voltar lá pra dentro que é melhor.

Podia ser assim pra sempre né? Cara, como é bom! Tirando essa vontade de ir no banheiro. Não, na verdade, tirando que amanhã tem “aula”. Tudo volta ao normal. Por que eu tô pensando nessas coisas horríveis? É só pular no grupo com muita emoção que fica tudo certo. Gritos, bebida voando. “Mais um?”. Mais um.

A luz acendeu. Agora tudo é silêncio. Ou pelo menos seria, se não fosse o barulho imenso do pessoal conversando. O chão é uma podridão: pegadas em um líquido preto que é uma mistura de Deus sabe lá o que. Decadência combina com destruição. A roupa de todo mundo fede álcool com doce, já disse que amo a máquina de lavar roupa? 4:24 da manhã. Caramba, amanhã vai ser osso, nem digo pelo sono. Mais um dia, mais uma aula, mais uns momentos de tédio, mais um choro, mais um erro igual. Mais um dia.

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Artur Mafud

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